Quarto do Livro https://www.quartodolivro.com.br Onde todos os seus livros te aguardam Thu, 22 Aug 2024 17:09:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 https://www.quartodolivro.com.br/wp-content/uploads/2024/06/icone-do-site-100x100.png Quarto do Livro https://www.quartodolivro.com.br 32 32 Por que escrever um romance? — por Umberto Eco https://www.quartodolivro.com.br/2024/08/20/por-que-escrever-um-romance-por-umberto-eco-2/ https://www.quartodolivro.com.br/2024/08/20/por-que-escrever-um-romance-por-umberto-eco-2/#respond Tue, 20 Aug 2024 21:40:25 +0000 https://www.quartodolivro.com.br/?p=219 O atributo alt desta imagem está vazio. O nome do arquivo é image.png

Escrevi um romance porque me deu vontade. Creio que seja uma razão suficiente para alguém pôr-se a narrar. O homem é um animal fabulador por natureza. Comecei a escrever em março de 1978, movido por uma idéia seminal. Eu tinha vontade de envenenar um monge. Creio que um romance possa nascer de uma idéia desse tipo, o resto é recheio que se acrescenta ao longo do caminho. A idéia devia ser mais antiga. Mais tarde, encontrei um caderno datado de 1975, onde eu tinha estabelecido uma lista de monges de um mosteiro impreciso. Nada mais. A princípio, comecei a ler o Traité des poisons de Orfila que tinha comprado vinte anos antes de um buquinista às margens do Sena, simplesmente por fidelidade a Huysmans (Là bas). Como nenhum dos venenos me satisfazia, pedi a um amigo biólogo que me indicasse uma substância que possuísse determinadas  propriedades (que fosse absorvível através da pele, ao manusear alguma coisa).

Destruí imediatamente a carta em que me respondia não  conhecer um veneno para este caso, por se tratar de documentos que, lidos em outras circunstâncias, poderiam levar alguém à forca. A principio, os meus monges deveriam viver em um mosteiro contemporâneo (pensava em um monge pesquisador que lia o  “Manifesto”). Mas como um mosteiro, ou uma abadia, ainda vivem de muitas lembranças medievais, pus-me a escarafunchar nos meus arquivos de medievalista em hibernação (um livro sobre estética medieval em 1956, outras cem páginas sobre o assunto em 1969, alguns ensaios no meio do caminho, retorno à tradição medieval em 1962 para o meu trabalho sobre Joyce, e finalmente em 1972 o longo estudo sobre o Apocalipse e sobre as miniaturas do comentário de Beato de Liebana: portanto a Idade Média era para mim um interesse constante). Eu tinha nas mãos um vasto material (fichas, fotocópias, cadernos) que se acumulava desde 1952, destinado a outros objetivos muito imprecisos: uma história dos monstros, uma análise das enciclopédias medievais, uma teoria do catálogo… A certa altura, disse a mim mesmo que, como a Idade Média era o meu imaginário cotidiano, seria melhor escrever um romance que se desenvolvesse  diretamente na Idade Média. Como já disse em algumas entrevistas, só conheço o  presente através da televisão, ao passo que da Idade Média tenho um conhecimento direto. Quando acendíamos fogueiras no campo, minha mulher me acusava de não saber observar as fagulhas que subiam entre as árvores e esvoaçavam ao longo dos fios elétricos.  Depois quando leu o capítulo sobre o incêndio, ela disse: “Mas então você observava as fagulhas! “. Respondi: “Não, mas sabia como um monge medieval as teria visto.”

Há dez anos, em uma carta do autor ao editor, acompanhando meu comentário ao comentário de Beato de Liebana sobre o Apocalipse (para Franco Maria Ricci), eu confessava: “Afinal de contas, despertei para a pesquisa atravessando florestas simbólicas, habitadas por unicórnios e grifos, comparando as estruturas pinaculares e quadradas das catedrais às pontas da malícia exegética  Encerrada nas fórmulas tetragonais das Summulae, perambulando entre o Vico degli Strami e as naves cistercienses, entretendo-me afavelmente com doutos e faustosos monges cluniacenses, sob as vistas de um Aquinate gorducho e racionalista, tentado por Onorio Augustoduniense, por suas geografias fantásticas nas quais se explicava não só quare in pueritia coitus non contingat, mas também como chegar à Ilha Perdida e como capturar um basilisco, usando apenas um espelhinho de bolso e uma fé inabalável no Bestiário.

Esse gosto e essa paixão nunca me abandonaram, mesmo se depois tomei outros caminhos, por razões morais e materiais (ser medievalista geralmente exige somas vultosas e disponibilidade para perambular por bibliotecas distantes, microfilmando manuscritos inacessíveis). Assim, a Idade Média ficou sendo não o meu ofício, mas o meu  hobby e a minha tentação constante, e eu a vejo por toda parte, de maneira transparente,  nas coisas de que me ocupo, que não parecem medievais, mas que o são.

Férias secretas sob as naves de Autun, onde hoje o Abade Grivot escreve manuais sobre o Diabo, com a encadernação impregnada de enxofre; êxtases campestres em Moissac e em Conques, ofuscado por Anciãos do Apocalipse ou por demônios que amontoam as almas danadas em caldeirões ferventes; e, contemporaneamente, leituras regeneradoras do monge iluminista Beda, confortos racionais pedidos a Occam, para compreender os mistérios do Signo, nos pontos em que Saussure ainda é obscuro. E assim por diante, com nostalgias contínuas da Peregrinatio Sancti Brandani, cotejos do nosso pensamento com o Livro de Kells, Borges revisitado nos kenningars célticos, relações entre poder e massas manipuladas, conferidos nos diários do Bispo Suger…

(Pós-Escrito ao O Nome da Rosa, Umberto Eco, 1993)

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